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segunda-feira, 7 de novembro de 2011

EU SEI,MAS NÃO DEVIA

Eu sei, mas não devia
Marina Colasanti

Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia.

A gente se acostuma a morar em apartamentos de fundos e a não ter outra vista que não as janelas ao redor. E, porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora. E, porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas. E, porque não abre as cortinas, logo se acostuma a acender mais cedo a luz. E, à medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.

A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque está na hora. A tomar o café correndo porque está atrasado. A ler o jornal no ônibus porque não pode perder o tempo da viagem. A comer sanduíche porque não dá para almoçar. A sair do trabalho porque já é noite. A cochilar no ônibus porque está cansado. A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.

A gente se acostuma a abrir o jornal e a ler sobre a guerra. E, aceitando a guerra, aceita os mortos e que haja números para os mortos. E, aceitando os números, aceita não acreditar nas negociações de paz. E, não acreditando nas negociações de paz, aceita ler todo dia da guerra, dos números, da longa duração.

A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir. A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta. A ser ignorado quando precisava tanto ser visto.

A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o de que necessita. E a lutar para ganhar o dinheiro com que pagar. E a ganhar menos do que precisa. E a fazer fila para pagar. E a pagar mais do que as coisas valem. E a saber que cada vez pagar mais. E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com que pagar nas filas em que se cobra.

A gente se acostuma a andar na rua e ver cartazes. A abrir as revistas e ver anúncios. A ligar a televisão e assistir a comerciais. A ir ao cinema e engolir publicidade. A ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na infindável catarata dos produtos.

A gente se acostuma à poluição. Às salas fechadas de ar condicionado e cheiro de cigarro. À luz artificial de ligeiro tremor. Ao choque que os olhos levam na luz natural. Às bactérias da água potável. À contaminação da água do mar. À lenta morte dos rios. Se acostuma a não ouvir passarinho, a não ter galo de madrugada, a temer a hidrofobia dos cães, a não colher fruta no pé, a não ter sequer uma planta.

A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer. Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá. Se o cinema está cheio, a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço. Se a praia está contaminada, a gente molha só os pés e sua no resto do corpo. Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no fim de semana. E se no fim de semana não há muito o que fazer a gente vai dormir cedo e ainda fica satisfeito porque tem sempre sono atrasado.

A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele. Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se de faca e baioneta, para poupar o peito. A gente se acostuma para poupar a vida. Que aos poucos se gasta, e que, gasta de tanto acostumar, se perde de si mesma.

(1972)

Marina Colasanti
nasceu em Asmara, Etiópia, morou 11 anos na Itália e desde então vive no Brasil. Publicou vários livros de contos, crônicas, poemas e histórias infantis. Recebeu o Prêmio Jabuti com Eu sei mas não devia e também por Rota de Colisão. Dentre outros escreveu E por falar em Amor; Contos de Amor Rasgados; Aqui entre nós, Intimidade Pública, Eu Sozinha, Zooilógico, A Morada do Ser, A nova Mulher, Mulher daqui pra Frente e O leopardo é um animal delicado. Escreve, também, para revistas femininas e constantemente é convidada para cursos e palestras em todo o Brasil. É casada com o escritor e poeta Affonso Romano de Sant'Anna.


ARNALDO NOGUEIRA JUNIOR

11 comentários:

Luna Sanchez disse...

Adoro esse texto, flor, ele me toca.

Beijo grandão!

CLEMENTE GERMANO MULLER disse...

Olá minha querida amiga Leninha. Boa tarde. Vim correndo agradecer tua amável visita em meu diário. Entro neste teu cantinho e encontro este texto marvilhoso, muito profundo e que nos leva a pensar muiiiiiiiito na vida.Graças à DEUS eu consegui sair do círculo vicioso de querer ter sempre mais e mais e depois ter que trabalhar para manter o que adquirimos. Aproveito para mandar um beijo muito carinhoso para a tua irmã e desejar a ambas uma semana maravilhosa, de muita luz e paz. FIQUEM COM DEUS. Beijos.

casa de fifia disse...

oi leninha
flor passei para te desejar um excelente inicio de semana
bacione

Smareis disse...

Leninha esse texto é um primor. Na vida a gente se acostuma com tantas coisas, que quando vemos estamos perdidos de nós mesmo. Grande reflexão. Beijos e ótima semana.

Élys disse...

Esse texto é magnífico . A gente vai se acostumando e aí a gente se dá conta que muita coisa passou e nós não vimos.
Beijos .

Lucinha disse...

Leninha,

Esse texto é lindo e um despertar.
Você como sempre muito inspirada em suas publicações.
Tenha um lindo dia. Beijos

Caca disse...

No mês passado uma irmã que mora no Rio me convidou para participar de uma oficina que a Marina estava dando lá sobre escrever crônicas e contos. Então eu fiquei lembrando com ela do tempo de adolescente, quando eu adorava os livros feministas dela, como A NOVA MULHER e MULHER DAQUI PRA FRENTE. Eram nossos livros de cabeceira, naquela efervescência das lutas por liberdade de expressão e contra a opressão da mulher. Gosto muito dela. E esse texto é uma maravilha.

Leninha, OBRIGADO imensamente pelas palavras de apoio e carinho por ocasião de minha perda que ainda dói tanto. Um abraço, paz e bem.

Ives disse...

Quase não olho a lua, mas ontem ela me chocou, me chamou, "venha devolta a natureza", abraços

O meu pensamento viaja disse...

Leninha, se eu pudesse vinha aqui todos os dias. Infelizmente o meu tempo tem que ser doseado, mas quando venho, oh!, quando venho, sou recebida assim, com um texto lúcido, belíssimo, em que as ideias se conjugam fazendo todo o sentido e, ao mesmo tempo, obrigam a parar para pensar.
Cresço todos os dias, crescerei até ao último dia se, atenta, for desafiada por pessoas como tu.
Beijo

Escritora de Artes disse...

Que texto edificante!

Saudações

Rosane Castilhos disse...

OI MINHA DOCE AMIGA!!!!
AMO ESTE TEXTO, PENSO ATÉ EM COLOCÁ-LO EM UMA DAS MINHA PINTURAS: PROJETINHO FUTURO.
SEMPRE BOM RELER, PARA A GENTE NÃO SE ACOSTUMAR A NÃO LER, PARA A GENTE NÃO SE ACOSTUMAR A DEIXAR AS COISAS BOAS NO FUNDO DO BAÚ, LER PARA LEMBRAR DE NÃO SE ACOMODAR E VIVER MELHOR!!!!
AMEI VIR AQUI.
BEIJINHO NO CORAÇÃO!!!